sexta-feira, 18 de julho de 2008

Viajem

Os dois, enfim, realizavam um grande plano: conhecer Mariana, primeira cidade mineira, que completa 312 anos em 2008. Cidade de uma beleza arquitetônica e de uma riqueza cultural que validam qualquer tipo de sonho que se tenha de realizar uma grande viajem. Cidade da rota do ouro, abriga 52 mil habitantes que vivem basicamente da mineração e do turismo. Turismo. Esse era o nome do plano. Simplesmente turismo. Um ano inteiro de economias para o deleite de simplesmente dormir e caminhar, fotografar e beber, fumar um cigarro atrás do outro e, sempre, até a ponta. Deixar-se levar pelo simples fato de aproveitar a vida no seu ritmo mais natural, á toa, encarando as amenidades como singelas amenidades.
Partiram numa quinta feira. Avião que sai de Porto Alegre, faz escala em São Paulo e chega em Belo Horizonte. De lá, viajem de ônibus durante três horas. Era esse o único roteiro certo que tinham. O resto seria improviso e impulso. Desceriam na rodoviária de Mariana e, num acordo rápido, seguiriam para um dos lados que tivessem como opção. Apenas uma mochila e uma bolsa. Nada de barracas, lonas ou talheres. O negócio seria hotel e restaurante. Um ano de economias é um ano de economias. Não seria gastar, seria usufruir.
Chegaram logo depois do meio dia na rodoviária da cidade mineira. Desceram, inspiraram fundo e esboçaram um agradável sorriso. Chegaram. Pouco mais de 6 horas de viajem e chegaram. Pegaram as mochilas no bagageiro do ônibus e rumaram para o exterior da rodoviária. Quando se olharam, ambos ainda estavam sorrindo. Ainda não haviam trocado uma palavra desde que embarcaram no ônibus, em Belo Horizonte.
- então?
- pois é.
- pra lá?
- por que não ?
E para lá se puseram a caminhar.
No caminho, belas moças com seus vestidos soltos e seus sorrisos floreados. Nos bares de beira de rua, vê- se os velhos jogando cartas que se empilham entre copinhos de martelinhos, provavelmente com cachaça mineira, que os nativos chamam simplesmente de cachaça. Um cutuca o outro para mostrar a cena. Vibram em silêncio. Casarões, casebres, casas, cachorros, carroças, tudo, tudo é belo. Tudo é envolto de um ar perceptível apenas para aqueles que chegam pela primeira vez a uma cidade. Nenhuma rua, calçada, esquina, loja, bar ou supermercado é conhecido. Nada é familiar. Tudo é novo.
Passam pela praça da cidade e percebem que ela fica entre o Boteco da Praça, o Teatro Municipal e o Hotel Mariana.
- perfeito!
De que mais precisariam?
Deixaram suas malas no hotel, que tinha na recepção um senhor muito simpático que traz um gracioso sotaque de “mineirim do inteiô” na fala, empunharam maquina fotográfica, caderneta e caneta, maço de cigarros, deram um tapa de seda na realidade e rumaram para o boteco para beber alguma coisa. Se lá servissem, talvez até almoçassem.
O boteco era simples, com balcão de madeira, quatro ou cinco mesas e na parede uma coleção de garrafas de wuisky, conhaque e cachaça. A mineira. Sentaram no balcão e pediram algo pra beber.
- Mas cês são gaúcho, sô!
- sim.
- é.
O garçom se inclina para a mesa ao fundo, onde sentam três senhores de calça e camisa de manga curta, com um simpático sorriso.
- óiai, gente. Esses aqui são gaúcho!.
E a mesa por completo sorri. Levantam os copos e arredam cadeiras vazias para junto deles. É um convite. Os dois se olham só para que um tenha certeza do que o outro concorda. Acomodam-se aos brindes com os novos amigos.
- mas então cês são gaúcho, é?!
- isso mesmo.
- mas de onde, lá?
- são Leopoldo. É perto de Porto Alegre.
- mas, óia. E tão de visita aqui na cidade? Chegaram quando?
- agora a pouco. Deixamos as coisas aqui, no Hotel Mariana, e viemos pra beber alguma coisa.
- cês tão aqui no Mariana, é?
- cês tão bem. O hotel é bão demais.
- cês falaram com o Geninho ou com a Dona Maria?
- falamos com o senhor que estava na recepção.
- ah, mas então foi com o Geninho. É ele que é o dono do Hotel. Já faz 45 nos que ele ta ali.
- é. Hotel muito limpo.
E começaram a papear. As cervejas vinham assim como vinha assunto e risada naquela mesa tão animada. Parecia que se conheciam há muito. Quando as garrafas já cobriam metade da mesa, se abraçavam e faziam planos de passeios no dia seguinte aos pontos turísticos da cidade, almoço na casa do outro, festa com a ‘mulherada’ na casa noturna Vem Quente, Uai! e tudo mais que velhos amigos planejam. Os dois turistas se esbaldavam na plenitude de saber que seus planos estavam dando certo. Estava tudo perfeito. Estava.
Um dos dois, mais exaltado na bebida e nas palavras, sentiu liberdade demais para falar o que pensava. E liberdade demais é perigoso. Ainda mais nesta situação. Achou que era conveniente falar que “ eles é que eram os reis do país. Tanto que faziam questão de dar dinheiro pro interior do país pra fazer turismo e comer as mulheres deles”. Silêncio na mesa. Ninguém entendeu. Ele ainda sorrindo tentou explicar a infeliz piada.
- entenderam? Turismo, dinheiro, mulher, economia, putaria.
Eles sabiam o que era turismo e economia. E a ação sexual mais obscena também. Não era essa parte da piada que eles não estavam entendendo. O outro amigo gelou. Os demais fecharam a expressão facial.
- como assim?
- é. Como assim?
- hora gente, é uma piada. Eu só quis dizer que...
- a gente entendeu o que ocê quis dizer.
- mas nós não gostamos disso, não.
- cês tão loco?
Cês. O outro amigo havia sido incluso na confusão.
- não, gente. Olha bem. A gente tava falando de paulista e daí eu quis brincar que...
- paulista é paulista.
- é. Pode!
- mas mineirim...
- ah, capaz. Tu não vai levar a sério, né?! A gente veio aqui pra se divertir e vai de qualquer forma dar dinheiro pra vocês. E não é verdade?
O da ponta da mesa levantou-se de súbito e desferiu os punhos fechados, em soco, contra a mesa e ergueu-se sobre o piadista sem graça. Foi seguido pelos outros que empurraram suas cadeiras para longe da mesa.
- esmola? Cês acham que a gente precisa de esmola?
- se tu quer chamar de esmola, então chama – o humorista desastroso mantém a moral.
- o que? Como eu quero chamar? Cês vem aqui de vez em quando e acham que podem sair falando com a gente desse jeito?
- ih, cara...
- cês acham que só por que vocês são colonizados por um bando de europeu medroso que deixou as próprias terras, cês são grande coisa? Cês fizeram porra nenhuma pelo país, enquanto a gente lutou e continua lutando por liberdade. Cês acham que liberdade é ter emprego pra sustentar um bairrismo ultrapassado e intransigente quando se fala da revolução esfarrapada e fraudulenta que cês inventaram.
- peraí, agora tu pegou pesado, porra. Ta pensando o que? Nós somos um dos maiores pólos econômicos do país. Metade do desenvolvimento deste país vem do Sul. Nossa garra e nossa força são invejadas por cada um de vocês que morrem de dor de cotovelo por não serem a metade do que a gente é. O negócio de vocês é pão de queijo e cachaça. E mulher bonita pra gente comer.
O ofendido ergue o braço para o soco á queima roupa e o ofensivo segue imóvel. Os outros três esperam . O que estava sentado continua sentado. Ficam todos imóveis. Os olhos sangram, queimam de medo e raiva. O ambiente paralisa nas linhas de uma tensão assustadora. Todos estão receosos. Sabem que o primeiro soco será o inicio de uma explosão que não se sabe as conseqüências. Silêncio. No fundo, um relógio de parede faz ‘tic-tac’.
O dono do bar bate com força no balcão.
- já chega! A conta tá aqui. Dá vinte reais pra cada um de ocês.
A linha de tensão inclinasse para a harmonia. É hora de aproveitar essa oscilação. O que ainda estava sentado levanta lentamente.
- peraí, gente. Que história é essa? A gente está perdendo um tempo valioso. Essa é uma discussão que não cabe em mesa de bar, não é pra essas horas. Não vai a lugar nenhum. Não adianta. Ao mesmo que tenho força para defender uma idéia, um outro alguém tem também a mesma força para defender sua idéia contraria a minha. Ainda somos uma federação. Ainda respondemos por um nome apenas. Somos moradores de quartos diferentes dentro de uma mesma casa. Qual é? A gente veio pra cá com a idéia de se divertir e dividir esta diversão com quem nos receber. Assim como faremos, e fazemos, quando somos visitados. É nossa índole. É nossa identidade lá fora, no exterior. Deixemos que as coisas continuem como estavam antes daquele infeliz comentário. Estão aqui os 40 reais de nossa conta. Passem bem.
E saem. Os olhos ainda fitam-se até a porta, vermelhos, incisados.
Não houve mais clima. Na manhã seguinte puseram as mochilas ainda intactas nas costas e rumaram de volta à rodoviária. Pediram uma passagem para Belo Horizonte e de lá embarcaram no primeiro avião para o sul. Desceram em Florianópolis e lá ficaram até o último dia da viajem. Aproveitaram o mar, o sol e o friozinho que bate no cair da noite. E aproveitaram a noite. E muito. E vez por outra, quando estavam em algum restaurante ou Luau a beira mar, sorriam um sorriso malandro um para o outro. E deixavam gorjeta gorda em cada lugar que iam na capital catarinense.

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