quarta-feira, 9 de julho de 2008

Dona Rosinha

Ela já tem os olhos cansados. Cansados de ver a vida passar por 74 anos. Anda cabisbaixa, em passos lentos como a brisa que sopra e balança as palmeiras que adornam a praça onde trabalha. Não tem rumo, mas sabe para onde vai. Ou para onde precisa ir: um quarto.
Mora á uma hora e meia da praça. E é nessa hora e meia que sonha. Vê a cidade passar ligeira pela janela do ônibus e lembra do tempo em que o tempo não tinha pressa. Passava no ritmo rangente das rodas de carroças puxadas por bois no seu vilarejo natal ou no faiscar dos bondes puxados a energia elétrica de cabos que se estendiam ao longo dos caminhos da “cidade grande” que lhe abrigou. Ainda era moça quando trocou os bois pelo bonde. Veio com o sonho que permeia o sentimento de cada migrante que larga suas raízes para achar outras terras onde se fixar: futuro. Mas futuro todos tem. O que lhes falta, e talvez seja o que procuram sem saber, é dignidade. Deixou para traz tradições, histórias, amigos, legado.
Desembarcou na grande cidade com os olhos fixos no horizonte. A garra para começar uma vida era sentida no palavrear pobre, porém honesto. Dona de uma farta beleza, e por ser ainda uma criança, deixou-se envolver pelo conto de fadas do amor á primeira vista. Abriu o coração e as pernas. Não pensou em pensar, apenas em agir. A vida é emergente. Deu ouvidos e o que tinha de mais puro. Quando chegou tinha as mãos cheias de malas e o coração cheio de esperança. Esperança. Foi esse o nome que deu a primeira filha que teve com o moço que lhe prometeu dignidade, mas que lhe entregou apenas desamparo. Ao invés das malas, agora uma criança. É isso que tinha nos braços quando passou pela primeira vez pela praça. Era ainda moça. Gozava do primeiro ano após seu debutar, mas já tinha na lembrança a decepção que traz o desespero. Por mais motivos que houvessem, não se deixou abalar. Como que ainda querendo o perpetuar de sua casta, embalou a menina e a despachou pelo correio, com os olhos cheios de lagrima, para a família que ficara no ranger das carroças, com a promessa de que quando tudo melhorasse reverteria esta decisão. Foi a ultima vez que mãe e filha se tocaram nos braços.
De todas as promessas que ouvira desde então, a única que se consolidou foi a de que nada seria fácil. E nunca foi. Aceitava o que viesse como retorno financeiro. Não se prendia a amenidades sobre fragilidade feminina ou inexperiência. Aceitava o que fosse com o objetivo de ter sua determinação reconhecida e bem paga. Ou nem tanto. Dormiu sob marquises, viadutos e em depósitos de bebidas. Embrenhou-se onde podia e até onde não podia. O Brasil espelhava-se em um Brasil que não tinha imagem definida. Para quem quisesse ser, era preciso antes poder ser. E ela não podia. Depois de tentar o amor, a faxina, a indústria e a clandestinidade, rendeu-se ao prazer. Alheio. Em 1951, um ano e 8 meses após sua primeira incursão na terra da garoa, parou para descansar sob a sombra de uma das palmeiras da praça. Seus pertences vindos da migração já se haviam perdido, o corpo reclamava de cansaço e os sentidos rendiam-se a fome. Até pensava em voltar a sua terra e ter nos braços novamente sua Esperança. Precisava apenas de dinheiro para uma passagem quando ouviu o primeiro convite para a libertinagem paga. Resguardando ainda princípios puritanos, tornou rubra a face e esbugalhou os olhos. Deu dois passos na direção oposta ao transeunte cafajeste e parou. Olhou a sua volta e pensou em tudo o que já tinha passado até ali e em tudo o que ainda viria a passar. Na falta de uma definição mais coerente de dignidade retornou em meia volta de súbito e balbuciando o imperceptível aceitou. Enquanto o homem lambuzava-se na sua virilidade masculina, ela olhava o teto e, percorrendo as mãos nas suas costas suadas, desenhava os caminhos que pretendia percorrer após aquela ânsia. Como o suor os caminhos se evaporaram.
Hoje enquanto caminha em passos lentos de um lado ao outro da praça procurando quem pague trinta reais por um pouco de decepção sexual, ainda pensa em tudo o que poderia acontecido e no que não aconteceu. Percebe que o barraco onde mora não chega nem a sombra do que imaginava ter. Mantém o sonho, e um lugar no canto da sala, para a maquina de costura. Costurar ainda será sua redenção. Ou então será sua aposentadoria previdenciária. Tem na parede um retrato de Jesus Cristo. Não sabe bem porquê, mas num país de 95 por cento de católicos, nada mais natural do que ter. Mesmo que seja esta devoção que explique a posição de terceiro mundo desta nação. Mas não reclama ou pergunta. Por acomodação aceita e participa. Tem também uma foto emoldurada de uma criança que achou em uma lata de lixo. Não sabe quem é, mas a tem. Talvez por querer manter viva a imagem da Esperança que há 57 anos não vê mais.

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