quarta-feira, 23 de julho de 2008

Um dia, frio, passagem e trem

O dia está frio. Uma tempestade pinta o horizonte de cinza. Amanda está vagando pelas ruas quase desertas da cidade. Não sabe o que procura, mas observa com atenção e poesia debaixo de cada desejo que lhe vem á cabeça. Depara-se com a entrada da estação de trem. Não há fumaça nem Maria, mas há ainda o mesmo objetivo: o horizonte. Pára por um instante observando a grande construção de pedra e ferro. Os pingos de chuva acariciam-lhe a pele das mãos. Entra. Pede uma passagem. Não sabe pra onde. Talvez um lugar onde não tenha ninguém. Ela precisava mesmo de uma passagem de trem. Pega o bilhete com o bilheteiro e vira-se para a porta de saída da estação. Não sabe há quem esperar, mas hesita por um instante antes de seguir para a plataforma de embarque. Sente um pingo de lagrima lhe umedecendo os olhos. Não está chorando. Está chovendo lá fora. Inspira o ar gelado que a cerca e decide. Se não vem ninguém, viaja de trem. Se ninguém responde, vai no das 11. Não sabe por que e nem pra onde. Mas prefere um lugar onde não tenha ninguém. Talvez seja isso que ele queira encontrar. Ninguém. Antes de sair de casa, deixara um bilhete. Não sabe pra quem. Talvez para si própria, quando for a outra que voltar de seu motivo para ter saído de casa naquele dia. Talvez voltasse para guardar uma passagem de trem na gaveta e esquecer ou para relembrar com saudade o tempo que passou. Dizia o bilhete: cuide bem das flores, não deixe morrer. São lindas ao amanhecer. Na estação ouve o som de um trem que parte para algum lugar. Nele, alguém está sentado na poltrona da janela e olha para fora sem saber o que vê. Enxerga alguns prédios, a Praça dos Brinquedos, o Ginásio Municipal, o Rio dos Sinos e muitos pingos que pingam do lado de fora do vidro. Em algum lugar de um dos prédios que ele enxerga alguém está sentado sobre a cama escrevendo em linhas de seda seu amiudiário. Mas nenhum deles sabe sobre o que está acontecendo com o outro que vive no mesmo momento. A vida acontece em todos os cantos e ao mesmo momento. E apenas uma parte disto é racional. A sua. O resto é suposição ou imaginação. Portanto a realidade é aquilo que imaginamos ou o que sabemos de fato? Então a realidade pode ser como se imagina. Se imaginar que no outro lado da linha férrea possa estar uma realidade mais poética, lá, realmente, pode estar uma realidade mais poética. Somos um amontoado de possibilidades fingindo que somos previsíveis. Amanda olha para a passagem em suas mãos que, úmidas, borraram a tinta que escrevia o destino da viajem. Sente um leve desespero pulsar-lhe no peito. Pode ser a sensação de sentir a morte. O sentimento de morte também pode ser o sentimento de, enfim, entender o que é a vida de fato. Suspira fundo e forte, de susto. Os olhos vidram no horizonte. Agora Amanda chora. Escorre-lhe uma silenciosa lágrima que vai beijar-lhe o canto direito da boca. Só lhe faltava a passagem, o trem, a coragem e um lugar pra ela viajar, sem ninguém. Ninguém.


* inspirado na música Cuide bem das Flores de Luciana Pestano

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