terça-feira, 29 de julho de 2008

Puta merda!

29 de julho de 2008. o dia amanhece molhado. muito molhado. o dia anterior já havia terminado molhado. e o de hoje continua molhado. minhas calças, molhadas. meus all star, molhados. que saco! este seco, mas cheio.
acordei as 5h50min com sono, muito sono. fui dormir tarde. mas não posso reclamar. acordo cedo para fazer exame médico admissional. vou ser contratado, ter um emprego regular e ser um cidadão tributavel. o sonho de qualquer brasileiro. né?! saio de casa as 6h58min. chove muito. pretendia ir a pé. mas chove, muito. penso em pegar um onibus, mas a parada de onibus fica a cinco quadras de minha casa e o ambulatório onde farei o exame fica a duas paradas de distancia da parada onde pego o onibus. vou me molhar de qualquer jeito. então continuo com a ideia de ir a pé, assim economizo. são tempos dificeis. por enquanto. se me molhar depois me seco. mas o dinheiro continuará no meu bolso. seco.
chego 7h15min no ambulátorio. minha consulta esta marcada para as 7h30min. mas descubro que o antendimento é por ordem de chegada. sou o terceiro a chegar. o serviço publico de saude é democratico e justo, adora filas. afinal, pra que agendar horarios? pra que ordem? querem dismistificar a idéia de que tempo é dinheiro. sento e espero. chove lá fora. estou com sono, muito sono.
o médico chega as 8h. 8h! minha paciencia, minha esperança de um mundo melhor e minha simpatia já se foram a muito tempo por esta hora. odeio esperar. se marcares comigo as 7h30min, lá estarei neste horário. odeio esperar, portanto, não faço esperarem.
por ordem, sou atendido as 8h20min, mais de uma hora depois de chegar ao ambulátorio. a sala do médico fica no fim do corredor. me dirijo até ela em passos lentos. pra que pressa? entro e bufo um bom dia. sento, olho para a cara barbuda do médico, abro minha bolsa lentamente e retiro o Atestado de Saúdo Ocupacional enviado pelo meu contratante para ser preenchido pelo médico em questão. entrego-lhe e enquanto ele preenche algumas lacunas burocraticas, pergunto:
- tu é médico do municipio?
- sim.
- tu sabe por que eles nos dizem para chegar aqui as 7h30min se só vamos ser atendidos as 8h20min?
- hein?!
acho que ele não entendeu a pergunta. numa paciencia ironica, re-pergunto:
- tu sabe por que eles nos dizem para chegar aqui as 7h30min se só vamos ser atendidos as 8h20min?
- é porque as gurias da recepção demoram para preencher tua ficha.
olho para a ficha que foi preenchida pelas gurias da recepção que está sobre sua mesa onde consta meu nome, um "x" no quadrado que diz "Exame Admissional" e um numero 3 circulado no topo.
- essa ficha? - questiono instigado.
- humrrum.
certo. prefiro não continuar. pra que? agora quem pergunta é ele:
- qual vai ser tua função?
- educador.
- estás tomando algum medicamento?
- não.
- fez alguma operação recentemente?
- não.
ele se dá por satisfeito e levanta com o estetoscópio. neste instante observo minha ficha e vejo nela escrito: riscos ergonômicos. obviamente que pergunto:
- o que significa riscos ergonômicos?
- são os riscos de tua função.
mas é claro! como pude ser tão ingenuo? obviamente que era isso. e poderia ser outra coisa?
ele pede que eu inspire fundo e solte, inspire e solte, inspire e solte.
- pronto! - ele exclama.
senta sobre sua cadeira, pega meu Atestado de Saúde Ocupacional e assinala um "X" no quadrado que diz APTO.
- pronto? - eu pergunto.
- sim. entregue este papel no RH de teu contratante e bom trabalho.
- mas é só isso? e se eu menti sobre alguma coisa?
- daí será probelma teu.
problema meu? eu estou sendo contratado para ser educador, não médico. o médico é ele. então por que não fiz esse exame por e-mail? mais de uma hora de espera para que ele faça um breve e repugnate questionário e marque um "X" no quadrado que lhe for mais conveniente? e se eu tenho lepra? e se eu sou psicótico e pretendo ser educador para mutilar crianças inocentes? e se eu tenho um virus mortal que se propaga pelo ar no meu organismo? respiro fundo e penso que deve ser bom mamar na teta do governo municipal. deve ser mesmo. saio da sala em silencio. chego na rua e vejo que ainda chove, chove e chove. olho para o Atestado de Saude Ocupacional e vejo no carimbo Antonio Luiz Vinade Médico do Trabalho CREMERS 17843 e me pergunto por que não cursei medicina. prefiro não responder. ponho-me a caminhar na chuva. amanhã vai ser outro dia. e neste outro dia eu vou estar empregado e tributavel. e continuarei usando meus psicotrópicos e tudo aquilo que uso para deviar minha realidade. mas serei um bom educador . e chegarei na hora, sempre. ainda mais se estiver chovendo e a aula for de manhã. mas por hoje, caminho com sono muito sono...

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Um dia, frio, passagem e trem

O dia está frio. Uma tempestade pinta o horizonte de cinza. Amanda está vagando pelas ruas quase desertas da cidade. Não sabe o que procura, mas observa com atenção e poesia debaixo de cada desejo que lhe vem á cabeça. Depara-se com a entrada da estação de trem. Não há fumaça nem Maria, mas há ainda o mesmo objetivo: o horizonte. Pára por um instante observando a grande construção de pedra e ferro. Os pingos de chuva acariciam-lhe a pele das mãos. Entra. Pede uma passagem. Não sabe pra onde. Talvez um lugar onde não tenha ninguém. Ela precisava mesmo de uma passagem de trem. Pega o bilhete com o bilheteiro e vira-se para a porta de saída da estação. Não sabe há quem esperar, mas hesita por um instante antes de seguir para a plataforma de embarque. Sente um pingo de lagrima lhe umedecendo os olhos. Não está chorando. Está chovendo lá fora. Inspira o ar gelado que a cerca e decide. Se não vem ninguém, viaja de trem. Se ninguém responde, vai no das 11. Não sabe por que e nem pra onde. Mas prefere um lugar onde não tenha ninguém. Talvez seja isso que ele queira encontrar. Ninguém. Antes de sair de casa, deixara um bilhete. Não sabe pra quem. Talvez para si própria, quando for a outra que voltar de seu motivo para ter saído de casa naquele dia. Talvez voltasse para guardar uma passagem de trem na gaveta e esquecer ou para relembrar com saudade o tempo que passou. Dizia o bilhete: cuide bem das flores, não deixe morrer. São lindas ao amanhecer. Na estação ouve o som de um trem que parte para algum lugar. Nele, alguém está sentado na poltrona da janela e olha para fora sem saber o que vê. Enxerga alguns prédios, a Praça dos Brinquedos, o Ginásio Municipal, o Rio dos Sinos e muitos pingos que pingam do lado de fora do vidro. Em algum lugar de um dos prédios que ele enxerga alguém está sentado sobre a cama escrevendo em linhas de seda seu amiudiário. Mas nenhum deles sabe sobre o que está acontecendo com o outro que vive no mesmo momento. A vida acontece em todos os cantos e ao mesmo momento. E apenas uma parte disto é racional. A sua. O resto é suposição ou imaginação. Portanto a realidade é aquilo que imaginamos ou o que sabemos de fato? Então a realidade pode ser como se imagina. Se imaginar que no outro lado da linha férrea possa estar uma realidade mais poética, lá, realmente, pode estar uma realidade mais poética. Somos um amontoado de possibilidades fingindo que somos previsíveis. Amanda olha para a passagem em suas mãos que, úmidas, borraram a tinta que escrevia o destino da viajem. Sente um leve desespero pulsar-lhe no peito. Pode ser a sensação de sentir a morte. O sentimento de morte também pode ser o sentimento de, enfim, entender o que é a vida de fato. Suspira fundo e forte, de susto. Os olhos vidram no horizonte. Agora Amanda chora. Escorre-lhe uma silenciosa lágrima que vai beijar-lhe o canto direito da boca. Só lhe faltava a passagem, o trem, a coragem e um lugar pra ela viajar, sem ninguém. Ninguém.


* inspirado na música Cuide bem das Flores de Luciana Pestano

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Viajem

Os dois, enfim, realizavam um grande plano: conhecer Mariana, primeira cidade mineira, que completa 312 anos em 2008. Cidade de uma beleza arquitetônica e de uma riqueza cultural que validam qualquer tipo de sonho que se tenha de realizar uma grande viajem. Cidade da rota do ouro, abriga 52 mil habitantes que vivem basicamente da mineração e do turismo. Turismo. Esse era o nome do plano. Simplesmente turismo. Um ano inteiro de economias para o deleite de simplesmente dormir e caminhar, fotografar e beber, fumar um cigarro atrás do outro e, sempre, até a ponta. Deixar-se levar pelo simples fato de aproveitar a vida no seu ritmo mais natural, á toa, encarando as amenidades como singelas amenidades.
Partiram numa quinta feira. Avião que sai de Porto Alegre, faz escala em São Paulo e chega em Belo Horizonte. De lá, viajem de ônibus durante três horas. Era esse o único roteiro certo que tinham. O resto seria improviso e impulso. Desceriam na rodoviária de Mariana e, num acordo rápido, seguiriam para um dos lados que tivessem como opção. Apenas uma mochila e uma bolsa. Nada de barracas, lonas ou talheres. O negócio seria hotel e restaurante. Um ano de economias é um ano de economias. Não seria gastar, seria usufruir.
Chegaram logo depois do meio dia na rodoviária da cidade mineira. Desceram, inspiraram fundo e esboçaram um agradável sorriso. Chegaram. Pouco mais de 6 horas de viajem e chegaram. Pegaram as mochilas no bagageiro do ônibus e rumaram para o exterior da rodoviária. Quando se olharam, ambos ainda estavam sorrindo. Ainda não haviam trocado uma palavra desde que embarcaram no ônibus, em Belo Horizonte.
- então?
- pois é.
- pra lá?
- por que não ?
E para lá se puseram a caminhar.
No caminho, belas moças com seus vestidos soltos e seus sorrisos floreados. Nos bares de beira de rua, vê- se os velhos jogando cartas que se empilham entre copinhos de martelinhos, provavelmente com cachaça mineira, que os nativos chamam simplesmente de cachaça. Um cutuca o outro para mostrar a cena. Vibram em silêncio. Casarões, casebres, casas, cachorros, carroças, tudo, tudo é belo. Tudo é envolto de um ar perceptível apenas para aqueles que chegam pela primeira vez a uma cidade. Nenhuma rua, calçada, esquina, loja, bar ou supermercado é conhecido. Nada é familiar. Tudo é novo.
Passam pela praça da cidade e percebem que ela fica entre o Boteco da Praça, o Teatro Municipal e o Hotel Mariana.
- perfeito!
De que mais precisariam?
Deixaram suas malas no hotel, que tinha na recepção um senhor muito simpático que traz um gracioso sotaque de “mineirim do inteiô” na fala, empunharam maquina fotográfica, caderneta e caneta, maço de cigarros, deram um tapa de seda na realidade e rumaram para o boteco para beber alguma coisa. Se lá servissem, talvez até almoçassem.
O boteco era simples, com balcão de madeira, quatro ou cinco mesas e na parede uma coleção de garrafas de wuisky, conhaque e cachaça. A mineira. Sentaram no balcão e pediram algo pra beber.
- Mas cês são gaúcho, sô!
- sim.
- é.
O garçom se inclina para a mesa ao fundo, onde sentam três senhores de calça e camisa de manga curta, com um simpático sorriso.
- óiai, gente. Esses aqui são gaúcho!.
E a mesa por completo sorri. Levantam os copos e arredam cadeiras vazias para junto deles. É um convite. Os dois se olham só para que um tenha certeza do que o outro concorda. Acomodam-se aos brindes com os novos amigos.
- mas então cês são gaúcho, é?!
- isso mesmo.
- mas de onde, lá?
- são Leopoldo. É perto de Porto Alegre.
- mas, óia. E tão de visita aqui na cidade? Chegaram quando?
- agora a pouco. Deixamos as coisas aqui, no Hotel Mariana, e viemos pra beber alguma coisa.
- cês tão aqui no Mariana, é?
- cês tão bem. O hotel é bão demais.
- cês falaram com o Geninho ou com a Dona Maria?
- falamos com o senhor que estava na recepção.
- ah, mas então foi com o Geninho. É ele que é o dono do Hotel. Já faz 45 nos que ele ta ali.
- é. Hotel muito limpo.
E começaram a papear. As cervejas vinham assim como vinha assunto e risada naquela mesa tão animada. Parecia que se conheciam há muito. Quando as garrafas já cobriam metade da mesa, se abraçavam e faziam planos de passeios no dia seguinte aos pontos turísticos da cidade, almoço na casa do outro, festa com a ‘mulherada’ na casa noturna Vem Quente, Uai! e tudo mais que velhos amigos planejam. Os dois turistas se esbaldavam na plenitude de saber que seus planos estavam dando certo. Estava tudo perfeito. Estava.
Um dos dois, mais exaltado na bebida e nas palavras, sentiu liberdade demais para falar o que pensava. E liberdade demais é perigoso. Ainda mais nesta situação. Achou que era conveniente falar que “ eles é que eram os reis do país. Tanto que faziam questão de dar dinheiro pro interior do país pra fazer turismo e comer as mulheres deles”. Silêncio na mesa. Ninguém entendeu. Ele ainda sorrindo tentou explicar a infeliz piada.
- entenderam? Turismo, dinheiro, mulher, economia, putaria.
Eles sabiam o que era turismo e economia. E a ação sexual mais obscena também. Não era essa parte da piada que eles não estavam entendendo. O outro amigo gelou. Os demais fecharam a expressão facial.
- como assim?
- é. Como assim?
- hora gente, é uma piada. Eu só quis dizer que...
- a gente entendeu o que ocê quis dizer.
- mas nós não gostamos disso, não.
- cês tão loco?
Cês. O outro amigo havia sido incluso na confusão.
- não, gente. Olha bem. A gente tava falando de paulista e daí eu quis brincar que...
- paulista é paulista.
- é. Pode!
- mas mineirim...
- ah, capaz. Tu não vai levar a sério, né?! A gente veio aqui pra se divertir e vai de qualquer forma dar dinheiro pra vocês. E não é verdade?
O da ponta da mesa levantou-se de súbito e desferiu os punhos fechados, em soco, contra a mesa e ergueu-se sobre o piadista sem graça. Foi seguido pelos outros que empurraram suas cadeiras para longe da mesa.
- esmola? Cês acham que a gente precisa de esmola?
- se tu quer chamar de esmola, então chama – o humorista desastroso mantém a moral.
- o que? Como eu quero chamar? Cês vem aqui de vez em quando e acham que podem sair falando com a gente desse jeito?
- ih, cara...
- cês acham que só por que vocês são colonizados por um bando de europeu medroso que deixou as próprias terras, cês são grande coisa? Cês fizeram porra nenhuma pelo país, enquanto a gente lutou e continua lutando por liberdade. Cês acham que liberdade é ter emprego pra sustentar um bairrismo ultrapassado e intransigente quando se fala da revolução esfarrapada e fraudulenta que cês inventaram.
- peraí, agora tu pegou pesado, porra. Ta pensando o que? Nós somos um dos maiores pólos econômicos do país. Metade do desenvolvimento deste país vem do Sul. Nossa garra e nossa força são invejadas por cada um de vocês que morrem de dor de cotovelo por não serem a metade do que a gente é. O negócio de vocês é pão de queijo e cachaça. E mulher bonita pra gente comer.
O ofendido ergue o braço para o soco á queima roupa e o ofensivo segue imóvel. Os outros três esperam . O que estava sentado continua sentado. Ficam todos imóveis. Os olhos sangram, queimam de medo e raiva. O ambiente paralisa nas linhas de uma tensão assustadora. Todos estão receosos. Sabem que o primeiro soco será o inicio de uma explosão que não se sabe as conseqüências. Silêncio. No fundo, um relógio de parede faz ‘tic-tac’.
O dono do bar bate com força no balcão.
- já chega! A conta tá aqui. Dá vinte reais pra cada um de ocês.
A linha de tensão inclinasse para a harmonia. É hora de aproveitar essa oscilação. O que ainda estava sentado levanta lentamente.
- peraí, gente. Que história é essa? A gente está perdendo um tempo valioso. Essa é uma discussão que não cabe em mesa de bar, não é pra essas horas. Não vai a lugar nenhum. Não adianta. Ao mesmo que tenho força para defender uma idéia, um outro alguém tem também a mesma força para defender sua idéia contraria a minha. Ainda somos uma federação. Ainda respondemos por um nome apenas. Somos moradores de quartos diferentes dentro de uma mesma casa. Qual é? A gente veio pra cá com a idéia de se divertir e dividir esta diversão com quem nos receber. Assim como faremos, e fazemos, quando somos visitados. É nossa índole. É nossa identidade lá fora, no exterior. Deixemos que as coisas continuem como estavam antes daquele infeliz comentário. Estão aqui os 40 reais de nossa conta. Passem bem.
E saem. Os olhos ainda fitam-se até a porta, vermelhos, incisados.
Não houve mais clima. Na manhã seguinte puseram as mochilas ainda intactas nas costas e rumaram de volta à rodoviária. Pediram uma passagem para Belo Horizonte e de lá embarcaram no primeiro avião para o sul. Desceram em Florianópolis e lá ficaram até o último dia da viajem. Aproveitaram o mar, o sol e o friozinho que bate no cair da noite. E aproveitaram a noite. E muito. E vez por outra, quando estavam em algum restaurante ou Luau a beira mar, sorriam um sorriso malandro um para o outro. E deixavam gorjeta gorda em cada lugar que iam na capital catarinense.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Confiança

Um relacionamento amoroso para dar certo tem que se basear na confiança. Isso é fato. Assim como uma sociedade financeira, um time de futebol e uma equipe de alpinismo. A confiança é o termômetro e tem que vir em primeiro lugar. Essa é a formula. E o amor é motivo, o ciúmes perfume e os sonhos conseqüência. Mas é preciso essencialmente que a confiança conduza a rotina.
Porém, para Bastião isso era difícil de entender. Ele até que já estava entendendo, afinal, seu relacionamento já passava de um ano. O tempo pode ser relativo, mas o amadurecimento é inevitável. Cada momento de vida é um momento de aprendizado. E há tempos Bastião estava aprendendo. O que lhe faltava era apenas coragem para transformar este aprendizado em realidade. E depois, as brigas já se tornavam corriqueiras e cada vez mais cruéis. Na última, por uma bobagem virtual, suas alianças, símbolos de um compromisso, foram esmagadas por palavras duras e ásperas. Falta de confiança. Estava sempre pensando que aconteceria com ele, que seria enganado, traído. E levava muito a sério este pensamento. Mas realmente já era hora de mudar, mudar este pensamento. Ele também não esperava ser assaltado e acabara de perder sua bicicleta para um gatuno. Ou seja: suas profecias não estavam bem ajustadas. Portanto, estava disposto a mudar. E a mudança seria naquela noite.
Era véspera de seu aniversário e o jogo do seu time de futebol passaria na televisão. Decidira, então, e em consenso com sua namorada, que assistiria ao jogo na companhia de amigos. Ela então decidiu que sairia a noite com uma amigas para beberem algo. Um barzinho e nada mais. Ele engasgou. Titubeou. Mas por que não? Era hora de se mostrar sábio. Mostrar que estava disposto a acreditar no amor. Concordou.
Ele teve uma ótima noite. Bebeu, deu boas risadas, mentiu e conformou-se com o empate no futebol. Vez por outra perdia-se em pensamentos e mexia no celular. Tinha vontade de ligar para ela. Mas balançava a cabeça no segundo seguinte e concordava que era besteira. Resistiu a noite toda. Foi uma diversão vigiada.
No dia seguinte, seu aniversário, encontrou-se com ela a tarde. Trocaram um forte abraço e ela disse:
- feliz aniversário!
- obrigado.
- não trouxe teu presente. Ficou em casa.
- sem problemas.
- e então? Já decidiu o que fazer hoje á noite?
- ainda não. Mas estou com uma forte tendência a fazer nada. Poderíamos sair pra jantar só nós dois. Que tal? Economizaríamos uma grana e passaríamos um momento só nosso. Seria uma comemoração por esta nova fase que estamos entrando em nosso relacionamento. Que tu acha?
- eu...ontem a noite eu conheci outro cara...

quinta-feira, 10 de julho de 2008

10 de julho

Amanda esta sentada na beira do abismo. Seus pés balançam no vazio e suas mãos tocam o nada. Seus olhos estão fixos no horizonte. Não pensa em nada, apenas existe. Está imóvel. Somente seus pés identificam a vida que há em seu corpo. Do mais, inércia. Sopra uma brisa suave e fria. O azul do céu não é mais tão azul tanto quanto para o mineirinho. Confunde-se com um pouco de cinza vermelho alaranjado poente. Amanda está triste. É só o que está. Mesmo que se para alguém pudesse, nada falaria. Não tem nada para falar. Apenas olhar. São 27 anos. Longos 27 anos. Tanta coisa já vivida, tanta dor já sentida. Mas a dor é como o amor, como o amanhecer: sempre uma velha novidade. Para cada nova dor uma velha moral e um recomeço tortuoso. Fica uma certa obrigatoriedade em rumar pra frente. É o que sempre escuta dos seus, que é preciso rumar em frente. Levantar a cabeça e seguir, de novo, como uma fênix, como uma poesia de amor grudada no poste de luz que aos poucos a chuva vai corroendo, mas que o tempo vai fixando cada vez mais fundo. No intimo. Uma dor não nos desacompanha uma vez que já esteja conosco. Recebe outros nomes, outros rótulos, outros motivos, mas é sempre a mesma dor. A velha novidade de sempre. Como esta que Amanda sente agora. Uma dor tão óbvia que mal se dá ao trabalho de molhar-se em lagrimas. Que mal deixa escapar dos dedos já calejados versos que a exprimam. Que não passa de uma nuvem perdida no imenso oceano de uma tempestade. Desta vez vem com mais força, talvez por já ter sido tão amena. É como uma tuberculose mal curada: Sela os lábios num silencio mórbido. Retira o brilho dos olhos tal como um eclipse esconde o brilho da lua. Vem de leve, em tom de magnitude, mas deixa uma escuridão que desvenda o abismo negro do universo de nossas almas solitárias. Torna-se difícil demais acreditar que tudo um dia vai acabar. Tal qual um amor arrebatador. E Amanda bem sabe disso. Sabe que para cada novo amor que aflora em sua poesia, outras tantas dores crescem como espinho a sangrar suas mãos. Sempre fora assim e assim parece que sempre será. Mas desta vez vai tomar uma decisão. O medo vem do desejo de não errar. E todo o erro é a sombra do acerto. Tomará uma decisão. Mesmo que em suma de nada adiante, desta vez Amanda vai ouvir os conselhos alheios: vai levantar a cabeça para, enfim, dar um passo a frente...

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Dona Rosinha

Ela já tem os olhos cansados. Cansados de ver a vida passar por 74 anos. Anda cabisbaixa, em passos lentos como a brisa que sopra e balança as palmeiras que adornam a praça onde trabalha. Não tem rumo, mas sabe para onde vai. Ou para onde precisa ir: um quarto.
Mora á uma hora e meia da praça. E é nessa hora e meia que sonha. Vê a cidade passar ligeira pela janela do ônibus e lembra do tempo em que o tempo não tinha pressa. Passava no ritmo rangente das rodas de carroças puxadas por bois no seu vilarejo natal ou no faiscar dos bondes puxados a energia elétrica de cabos que se estendiam ao longo dos caminhos da “cidade grande” que lhe abrigou. Ainda era moça quando trocou os bois pelo bonde. Veio com o sonho que permeia o sentimento de cada migrante que larga suas raízes para achar outras terras onde se fixar: futuro. Mas futuro todos tem. O que lhes falta, e talvez seja o que procuram sem saber, é dignidade. Deixou para traz tradições, histórias, amigos, legado.
Desembarcou na grande cidade com os olhos fixos no horizonte. A garra para começar uma vida era sentida no palavrear pobre, porém honesto. Dona de uma farta beleza, e por ser ainda uma criança, deixou-se envolver pelo conto de fadas do amor á primeira vista. Abriu o coração e as pernas. Não pensou em pensar, apenas em agir. A vida é emergente. Deu ouvidos e o que tinha de mais puro. Quando chegou tinha as mãos cheias de malas e o coração cheio de esperança. Esperança. Foi esse o nome que deu a primeira filha que teve com o moço que lhe prometeu dignidade, mas que lhe entregou apenas desamparo. Ao invés das malas, agora uma criança. É isso que tinha nos braços quando passou pela primeira vez pela praça. Era ainda moça. Gozava do primeiro ano após seu debutar, mas já tinha na lembrança a decepção que traz o desespero. Por mais motivos que houvessem, não se deixou abalar. Como que ainda querendo o perpetuar de sua casta, embalou a menina e a despachou pelo correio, com os olhos cheios de lagrima, para a família que ficara no ranger das carroças, com a promessa de que quando tudo melhorasse reverteria esta decisão. Foi a ultima vez que mãe e filha se tocaram nos braços.
De todas as promessas que ouvira desde então, a única que se consolidou foi a de que nada seria fácil. E nunca foi. Aceitava o que viesse como retorno financeiro. Não se prendia a amenidades sobre fragilidade feminina ou inexperiência. Aceitava o que fosse com o objetivo de ter sua determinação reconhecida e bem paga. Ou nem tanto. Dormiu sob marquises, viadutos e em depósitos de bebidas. Embrenhou-se onde podia e até onde não podia. O Brasil espelhava-se em um Brasil que não tinha imagem definida. Para quem quisesse ser, era preciso antes poder ser. E ela não podia. Depois de tentar o amor, a faxina, a indústria e a clandestinidade, rendeu-se ao prazer. Alheio. Em 1951, um ano e 8 meses após sua primeira incursão na terra da garoa, parou para descansar sob a sombra de uma das palmeiras da praça. Seus pertences vindos da migração já se haviam perdido, o corpo reclamava de cansaço e os sentidos rendiam-se a fome. Até pensava em voltar a sua terra e ter nos braços novamente sua Esperança. Precisava apenas de dinheiro para uma passagem quando ouviu o primeiro convite para a libertinagem paga. Resguardando ainda princípios puritanos, tornou rubra a face e esbugalhou os olhos. Deu dois passos na direção oposta ao transeunte cafajeste e parou. Olhou a sua volta e pensou em tudo o que já tinha passado até ali e em tudo o que ainda viria a passar. Na falta de uma definição mais coerente de dignidade retornou em meia volta de súbito e balbuciando o imperceptível aceitou. Enquanto o homem lambuzava-se na sua virilidade masculina, ela olhava o teto e, percorrendo as mãos nas suas costas suadas, desenhava os caminhos que pretendia percorrer após aquela ânsia. Como o suor os caminhos se evaporaram.
Hoje enquanto caminha em passos lentos de um lado ao outro da praça procurando quem pague trinta reais por um pouco de decepção sexual, ainda pensa em tudo o que poderia acontecido e no que não aconteceu. Percebe que o barraco onde mora não chega nem a sombra do que imaginava ter. Mantém o sonho, e um lugar no canto da sala, para a maquina de costura. Costurar ainda será sua redenção. Ou então será sua aposentadoria previdenciária. Tem na parede um retrato de Jesus Cristo. Não sabe bem porquê, mas num país de 95 por cento de católicos, nada mais natural do que ter. Mesmo que seja esta devoção que explique a posição de terceiro mundo desta nação. Mas não reclama ou pergunta. Por acomodação aceita e participa. Tem também uma foto emoldurada de uma criança que achou em uma lata de lixo. Não sabe quem é, mas a tem. Talvez por querer manter viva a imagem da Esperança que há 57 anos não vê mais.