quarta-feira, 13 de maio de 2009

Cronica da Casa Assassinada - II

A Calopsita era para ele o que ele era para si próprio. Chamava-a de Alma. Era de uma cor radiante, num amarelo ouro envolto de uma leve borda marrom em cada pena. E cantava, ah!, como cantava. Iluminava a manhã num agudo aurora, em notas de Estrada do Sol, do Tom. Detalhe: solo no piano.
Moravam apenas o dois num apartamento de dois quartos, um para cada, e era felizes numa simplicidade única, coisa de pares singulares. Ela o acordava e ele a punha para dormir. Nunca iam pra cama, uma para cada, sem ele ler Vinicius de Moraes e Mario Quintana para ela. Então, antes do ultimo verso, ela suspirava e adormecia sobre suas penas, num sonho profundo. “... dorme, como dormirás um dia, na minha poesia, um sono sem fim.”Eram companhias completas. Conheciam-se de profundas indagações sobre amor, futuro e boemia, em noites regadas a vinho, só para ele, e muita, muita Bossa Nova. Um consolava o outro nos piores dilemas, nas mais profundas especulações sobre casamentos, um para cada, filhos e “o que eu me tornei?”. Separavam-se apenas quando ele saia para trabalhar como carteiro. Mas no mp3, que lhe serve em trilha sonora para o dia, tocava apenas a saudade “... não há tempo mais vazio do que longe do meu bem.”Mas acontece que um dia o dia amanheceu em silêncio.
Ele acordou de susto e correu para o quarto dela. Vazio. Levou as mãos á cabeça num gesto de desespero e passou a procurar pela casa. Banheiro, cozinha, quarto, Alma!, sala, guarda roupa, Alma! Alma!. Parou de joelho no meio da sala, aos prantos, entregue ao choro compulsivo da perda.
Naquele dia não foi trabalhar. Não abriu a janela, não saiu de casa, não parou de beber, não desligou o aparelho de som. “Tem pena de mim. Houve só meus ais. Eu não posso mais. Tem pena de mim.”.Os dias nunca mais foram os mesmos. Entregava cartas de dia e saia para beber a noite, num gesto inconsciente de busca por sua alma. Nos dias de folga, zanzava pelas ruas com os olhos buscando o nada, o vazio, um horizonte.

Era sábado de manhã. Uma manhã cinza, sem cor, querendo nublar. Ele percorria o centro da cidade de cabeça baixa, cigarro esfumaçando entre os dedos, passos perdidos. De repente, rasgando o cinza chumbo dos céus, um raio quente de sol veio aquecer-lhe a face. Foi quando ouviu em assovio: “...é de manhã...” . Petrificou. Era ela. A Estrada do Sol. Era ela. A Alma. Abriu um sorriso e saiu á procura do assobio. Vinha de uma agropecuária. Emocionado na busca pelo som, grudou os olhos numa parede repleta de gaiolas com as mais diversas espécies e cores de aves. Não teve dúvidas e apontou o dedo para a gaiola certa gritando: Alma!
Ajoelhou ante a gaiola e, eufórico, cantava a musica do assobio. As mãos abraçavam a gaiola. O dono do recinto, espantado com tal atitude, aproximou-se oferecendo ajuda.
De repente sentiu por dentro uma raiva, um desespero dos dias de solidão e angustia. Dias em que preferia a morte. E agora encontra sua Alma presa como um produto á venda dentro de uma gaiola. Explodiu verbalmente sobre o senhor:
- Pois quem precisará de ajuda é o senhor, que aceita mercadoria roubada em seu recinto. Que espécie de espelunca é essa que faz parte de um crime organizado, contrabandeando animais silvestres? Que espécie de ser humano é o senhor que contribui para o desespero alheio? Pois saiba que eu encontrei com a dor, eu provei o sabor salgado da lagrima, eu furei meus olhos nos copos com gelo porque gente como o senhor roubou o que mais me era meu. O senhor roubou minha Alma. Pareceu-lhe justo pensar em seus lucros contínuos e exorbitantes antes de pensar no que realmente há para se importar na vida. Vendo tal atitude, fica explicito o por que do definhamento da espécie humana, consumindo seus umbigos como hienas eufóricas e famintas. Lambuzando-se com o próprio sangue na estúpida sensação de ser sangue alheio. É deprimente o seu espírito putrefato.
- Senhor, o que é isto?
- Isto, meu caro senhor, é um acerto de contas com sua consciência. Exijo que o senhor devolva minha Calopsita e responda pelos seus atos sujos e mesquinhos. E que disponha-se a encarar-se de frente a cada manhã na frente do espelho, antes mesmo de lavar esta cara imunda e vestir-se de uma mascara cruel e impessoal.
- Meu senhor, deve haver um engano...
- Engano é o que o senhor faz com sua própria vida, ou melhor, com sua própria morte. Achas que serás assim imponente quando estiveres caminhando sobre a ponte pênsil que divide o inferno do céu? Ou achas que o peso de tua consciência não vai desequilibrá-lo? Se pensas que serás como todos os outros, pense que ...
- Meu senhor, há um engano. Isto não é uma Calopsita. É uma Caturrita.
Ele estalou os olhos para o senhor da loja. Ficaram em silêncio por instantes que permearam nas leis de Einstein por anos. Baixou a cabeça e virou-se em silêncio para perder-se porta afora.
Passou a escutar Papas da Língua, fez do quarto vago uma sala de ginástica e agora tem um peixinho dourado num aquário no canto esquerdo da sala.

Nenhum comentário: