sábado, 23 de agosto de 2008

Só na ponta...

Está uma noite daquelas. A lua flutua no mar negro da imensidão do espaço linda, cheia e resplandecente. A temperatura está amena, ideal para se beber um café ou uma cerveja. Na rua, as pessoas saboreiam a noite por ser sexta-feira e por estar uma deliciosamente noite para se saborear. Todos, hoje, são amantes boêmios da vida. Inclusive ele, que sorve o último gole de seu café e fecha a mochila de viajem. Coloca-a nas costas, enche o pote de ração do gato, alisa-o por inteiro, pega as chaves da moto, o capacete, apaga todas as luzes de seu apartamento e sai. Estacionada na frente da porta do edifício está sua moto, uma Dafra Kansas, 150Cc estilo estradeira. Coloca a mochila sobre o banco e passa o extensor prendendo-a firmemente. Põe o capacete, monta sobre a moto, dá a partida, olha para os lados como que procurando um rumo e acelera seguindo a mão de transito da rua. Não sabe para onde ir, mas sabe aonde quer chegar. Toma a estrada e ela o toma. Atira-se no horizonte escuro que se estende ante seus olhos e deixa-se embalar pelo vento. Um vento morno, que acaricia seu rosto de forma tenra e acolhedora. Seu olhar fixa-se à frente e seus pensamentos vagam para todos os lados conduzindo a velocidade da moto e essa, amena, não ultrapassada os 80Km/h. No céu alguma estrelas imitam o tintilar de luzes da cidade que vai ficando pra traz. O cheiro do vento agora é de crustáceo. O próprio ar é mais gorduroso. É bom, lembra o verão. E o verão lembra disposição e a disposição lembra auto-estima. Sorri com os cantos da boca.
Das três pistas da Free-Way escolhe a mais à direita. Não há pressa. Só o que lhe interessa é partir, seguir em frente, sair de casa, abraçar o mundo. Dar uma chance à aventura, ao inesperado, a surpresa. Cada quilometro rodado é um ano á mais de vida. E não por um calculo cronológico, mas por um melhor aproveitamento dos anos já vividos. Há tempo para pensar, refletir, lembrar. A estrada é longa, plana e reta. Permite à mente desligar-se em quase sua totalidade e deixar que a razão coordene o pouco que há para coordenar. Ele simplesmente segue. E seguindo torna-se livre. E a liberdade é estar vivo. Livre arbítrio. Tem essa regra tatuada no pulso esquerdo. Ergue-o, lê e suspira. Livre arbítrio. Do bolso da jaqueta que veste retira um cigarro e um isqueiro. Por que não? O vento traga bem mais fundo, mas e daí?! O fato não é fumar, mas escolher fumar andando de moto. O tempo por um instante deixa de existir, ou melhor, deixa de correr.
De repente algo no retrovisor direito lhe chama a atenção. Consequentemente a mente retorna ao seu lugar. Do retrovisor identifica um carro em alta velocidade, vindo na mesma pista que a sua. Ele guia a moto no meio da pista e decide mantê-la assim enquanto sentir-se seguro. O carro continua vindo atrás dele como dois meteoros paralelos atirando-se na imensidão da noite. E ele esta na frente deles. Duas luzes brilham. É uma vermelha e outra azul. Não são meteoros, é a policia. Os faróis da policiam aumentam e diminuem de intensidade, num sinal claro que estão sinalizando para ele. Como eles não diminuem, ele decide reduzir ainda mais a de velocidade, tomando o acostamento até parar a moto por completo e desliga-la. A viatura da policia pára logo atrás. Um policial desce e ele retira calmante o capacete. Um outro policial também desce da viatura, mas fica parado em pé atrás da porta aberta. O primeiro á descer aproxima-se da moto e lhe ordena:
- boa noite. Os documentos da moto e do senhor, por favor.
- boa noite. Claro. Vou pegar a carteira no bolso da calça, ok?!
- claro.
Ele pega a carteira e entrega os documentos requisitados. O policial com os documentos averigua a numeração da placa e da habilitação. Após, devolve-os:
- ta indo pra onde?
- floripa.
- floripa a essa hora? Conta outra!
- e qual a hora certa? Trabalhei até as 6 horas da tarde me arrumei e saí.
- sei. E na mochila?
- roupas.
- sei. E um bagulinho pra fumar e vender lá em Floripa, né?!
- não.
- e pra que andar tão devegar?
- não há pressa.
O policial sorri ironicamente e grita ao outro parado atrás dos faróis e da porta aberta da viatura:
- tu ta ouvindo? Ele falou que ta andando devagar por não tem pressa. Na Free-Way! Pode? – voltando rispidamente para ele – conta outra! Tu ta loução, sim! Com uma baita moto dessa tu não vai querer correr?
- ela é 150Cc. Se eu correr, chego até onde?
- da onde 150Cc? Essa aí é daquelas de 750Cc.
- não é não. É só a cara dela. Essa é uma Dafra Kansas 150Cc.
- é nada!
- tu não viu no documento?
- é claro que eu vi! Mas não desconversa. Tu ta loução, sim! Olha tua cara, olha pros teus olhos. Tão um vermelhão só.
Ele para e fita profundamente os olhos do policial. Não pisca. O policial devolve um olhar incisado e cansado. As olheiras dimensionam as horas de trabalho. Quando pisca, uma lagrima escorre. Do nada, começa a chorar. Contidamente mas lacrimejosamente. Ele baixa os olhos por um instante e quando levanta começa a falar. O policial está espantado:
- cara, eu perdi tudo. Acabei de perder meu emprego, minha casa e minha mulher. A única coisa que salvei foi esta moto que inda estou pagando. Há um mês atrás eu tinha tudo: grana, mulher, casa, família, futuro, felicidade. Daí resolveram na empresa que era melhor cortar gastos. E eu descobri que era um gasto pra eles. Oito anos fazendo a mesma coisa, dedicando cada segundo de aprendizado para entender todos os sistemas de uma empresa que me considera um gasto. Minha mulher resolve, então, que é hora de falar a verdade, de dizer que há tempos as coisas não vão indo bem entre a gente e que era melhor falar logo do que ficar enrolando ainda mais. Mas ela disse que não era pra eu me preocupar, pois eu encontraria alguém especial para mim. E disse também que a casa ficaria com ela, pois fora seu pai quem tinha emprestado o dinheiro da entrada para compra-la. Só esqueceu de mencionar que era com meu dinheiro que o empréstimo estava sendo pago, assim como as parcelas que ainda restavam da casa. A moto ficaria comigo e também as prestações. Disse ainda que só estava fazendo aquilo pois sabia que aquilo era o melhor pra nós dois. Simples, assim. Ela sabia por nós dois. Agora me diz, vou ter pressa pra que? Pra chegar onde? Não tenho mais nada, só tenho um irmão em Floripa. E é para lá que estou indo, nada mais. Com toda minha vida nesta mochila. Meus olhos vermelhos de chorar são a única prova que tenho do que estou falando.
O policial engole á seco. Olha para o lado e percebe que seu parceiro saiu do lado da viatura e também está ali, ouvindo. O silêncio é barulhento e perturbador. Ele baixa os olhos. O policial que chegou depois se obriga a encerrar aquele clima:
- então essa moto é 150Cc? Melhor ir devagar mesmo. Está até uma noite muito boa para se andar devagar de moto.
O outro policial volta de súbito do pensamento distante em que estava:
- é sim, é.
- vai lá, vai tranqüilo. Boa viajem. E se precisar da gente é só ligar. O numero está nas placas da rodovia. E guarda o numero porque depois de passar a fronteira dos dois estados me liga igual que eu mando o cara certo te ajudar.
Ainda sentado na moto, ele levanta os olhos úmidos:
- obrigado.
- vamos – diz o policial para o outro – eu dirijo.
Os guardas dão as costas, entram na viatura e seguem com os faróis baixos e em silêncio.
Ele observa a viatura que se perde no breu da estrada. Quando ela desaparece por completo, dá um sorriso irônico com o meio da boca. Recoloca o capacete, liga a moto, acendo outro cigarro e recomeça seu rumo.
A estrada parece mais leve. Talvez seja a sensação de piedade que acabara de gerar. Talvez, até, seja este o último sentimento que nos mova e que ainda pode nos mover: piedade. E um pouquinho de malandragem, é claro.

2 comentários:

Leandro Coimbra disse...

valeu o coment lá meu querido!
tá escrevendo muito heim!!

Gaveta Semiaberta disse...

eu é que agradeço por aqui...