quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Triscanaturagem

O sonho dele era ser cantor. Desde de sempre, cantava. Brinca dizendo que quando nasceu não chorou, cantou em capela Cry Baby, da Janis Joplin. Quando moleque, gostava de ficar sentado no quintal de casa ouvindo os passarinhos que cantavam entre as árvores. Retribuía cantarolando uma canção afinadíssima na cozinha, enquanto sua mãe preparava o almoço. A mãe elogiava contando uma lenda de que seu pai e ela o conceberam ouvindo Quarta-feira de Cinzas, na voz de Vinicius de Moraes e Toquinho. E ele tratou de cantar para alegrar a cidade. Cantava na escola, no campinho de futebol, na padaria, no ponto de ônibus e na beira da praia. Mas não cantava no chuveiro. Essa não era uma extravagância para a realidade daquela família, dizia o pai. Mas a grande questão é que ele gostava mesmo era de público. Gostava da energia, de ver a troca entre a música e o sorriso alheio. Não havia reunião de amigos que não era embalada pela sua bela voz. Ninguém lembrava de levar o mp3 para o acampamento quando ele estava junto. Cantava da manhã até a noite. Mas não era um repertório, era uma trilha sonora natural. A música fluía no mesmo compasso em que a natureza que os cercavam. Quando dormia, ou mesmo quando acordava, sonhava em ser famoso, ter sua música reconhecida, levar suas notas músicais para todos os cantos do mundo, para todas as pessoas do mundo. Mas lhe faltava um tantinho de coragem. No fundo, sabia que ali era o seu lugar. Entre seus amigos, sua família. A música era parte da vida não uma necessidade pra viver. Os amigos e todos o incentivavam a sair e correr atrás de seus sonhos, mas ele se mantia acomodado. Ouvia e bem recebia cada conselho, mas preferia manter-se imóvel. Até que não teve mais como fugir desta questão. Um dia, informado por um de seus amigos, ficou sabendo que um programa de rádio que procurava talentos pelo país estava realizando uma audição a 300 quilômetros da sua cidade. Ouviu a noticia com brilho nos olhos. Seu peito estalou. Suas mãos suaram, esboçou um leve sorriso e disse para si: é agora! Decidiu que iria participar do programa. Chegara sua hora! Todos festejaram a decisão. A cidade não parava de comentar: seu filho mais ilustre estaria galgando seu sucesso. Seria ao mesmo tempo o sucesso de todos. E ele se preparou, e muito. Ensaiou, decorou, aprendeu, se convenceu. A cada manhã acordava mais entusiasmado. Tinha certeza que era sua hora. Sabia que era hora de realizar seu sonho e estava pronto para aquilo. Escolheu a música de sua alma. E não contou que música era essa pra ninguém. Ninguém saberia qual música ele iria cantar até o dia da audição. Juntou dinheiro, algumas roupas na mala e não esqueceu a escova de dentes, o sabonete e o violão. Chegou o dia da partida e partiu. A cidade parou para vê-lo passar e seguir, rumo à realização de um sonho, um sonho de toda aquela população. Na cidade da audição, uma cidade grande, desceu na rodoviária e procurou um hotel. Informando-se sobre o local das inscrições para o programa, para lá rumou e tratou de começar a construção de uma realidade. Nos dois dias que faltavam para a apresentação ficou no hotel, ensaiando, inspirando, ouvindo os pássaros que pousavam nos postes de alta tensão em frente a janela de seu quarto. Ligava para casa e, além de dizer que estava tudo bem, não respondia as insistentes perguntas de seus pais para saber qual música ele cantaria. Era segredo. Um mistério. A cidade estava empolvorosa. Nos bares, nas padarias, nos restaurantes, nos bancos da praça e na fila dos bancos só o que se falava era de sua viajem e de qual possível música ele iria cantar. Os mais chegados davam palpites quentes e confiantes. Mas todos sabiam que ninguém sabia qual seria a música. Acordou para o grande dia com um vasto sorriso. O sol entrava pela janela e iluminava seu rosto. Os pássaros lá fora cantavam em coro. Tomou um banho, vestiu a melhor roupa, tratou de sua higiene epidérmica e bucal e saiu saltitante hotel afora. No local da apresentação, mantia-se concentrado. A fila com os outros candidatos era grande mas continuamente em movimento. A expressão no rosto de cada um dos candidatos era contrastante antes e depois de sair da sala de audição. Mas as lagrimas nos olhos eram unanimidades. Ou choravam por passarem na eliminatória ou choravam por não passarem. Cerca de duas horas depois, chegou sua vez. Parou ao lado da porta esperando que o candidato que estava a sua frente na fila saísse. E este saiu chorando copiosamente. Não passara. Ele, ao lado da porta, ficou um pouco abalado, mas não se deixou desmotivar. Confiava em seu dom. Era um dom natural, que nascera junto de si. Era naquilo que acreditava. De repente, era sua vez. A porta se abriu para que entrasse. Antes de dar o primeiro passo, fechou os olhos, respirou fundo e pensou em toda sua vida e em todo seu povo que estava acreditando nele. Era aquele o momento. Para ele e para todos. Apertou as mãos em tom de confiança e deu o primeiro passo. Na cidade, todos por um instante suspiraram fundo e pararam o que estavam fazendo. Fez-se um silêncio mútuo. Na sala de audição, eram três os jurados que avaliavam o candidato. Dois homens e uma mulher. Ele parou ante os três e ficou parado. O jurado do lado esquerdo, um loiro alto e com cara de quem acabou de acordar, o interpelou.
- então você acha que tem talento?
- sou apenas um tom na música da vida – respondeu confiante.
- hum, gostei – disse a jurada sentada no meio da mesa.
- então cante! – finalizou o candidato do lado direito.
E assim ele o fez: cantou. E cantou divinamente, como nunca havia cantado antes. Seu corpo todo respondia a cada nota que saia de suas cordas vocais. Era como o canto dos pássaros das árvores a frente de sua casa. Era como o cheiro da comida que vinha das panelas na cozinha, com sua mãe. Era uma música que alegrava a cidade. Porque eram tantas coisas azuis, eram grandes promessas de luz. Era tanto amor para dar... Naquele instante, a música era sua alma e sua alma era luz. Tinha os olhos fechados e os braços elevados aos céus quando a música terminou. Abriu os olhos baixando os braços lentamente e viu um sorriso de satisfação estampado no rosto de cada jurado. Ele também sorriu. Sorriu confiante. A cidade também sorriu e voltou ao seu ritmo normal. Ele conseguiu! Quem começou falando foi o jurado da direita:
- incrível! Você tem razão, você é um tom na música da vida. Aliás, você é a própria música. E a escolha da música para esta audição foi perfeita. Meu voto é “sim”, para que você continue na disputa para ser o próximo talento do país.
- concordo plenamente – continuou o jurado da esquerda – você foi quase perfeito. Seu corpo todo cantou junto contigo. Foi lindo. A música foi divina. Mas acho que para um novo talento do país você ainda não esta pronto. Falta algo que eu não sei o que. Vocé é ainda muito normal. Meu voto é “não”.
O sorriso que ele ainda mantia depois da fala do jurado da direita, de repente enfraqueceu. Recebera um “não”. Não estava pronto para aquilo. Será que teria falhado? Será que não era sua vez de brilhar? Se recebesse um “sim” da próxima jurada seria sua glória. Se recebe um “não”... não conseguia nem imaginar. Seria um fim?
- agora sobrou pra mim – começou a jurada do meio da mesa. Vou ter a terrível missão de decidir sobre sua permanência neste programa para se tornar o novo talento do país. É preciso que você saiba que só o fato de você estar aqui já é uma vitória. Você já é um grande talento e se continuar lutando, com certeza logo chegara lá...
O jurado da direita á interrompeu:
- ora, diga logo sua resposta. O garoto está aflito, querendo saber o que será dele e você fica com este papinho paternalista? Faça-me o favor!
- como assim? - reagiu o jurado da esquerda. As coisas agora tem que ser instantâneas, imediatas, cruas e cruéis? Deixe que a adrenalina corra as veias de quem ainda é jovem.
- estás me chamando de velho? - rebateu o jurado da direita.
- velho não. Insensível.
- ah, sim. O melhor então é nos rendermos á um mundo sensível, onde todos choram ao nascer do sol, onde todos batem palmas para o crepúsculo e onde todos cantem para a lua? A verdade tem que ser crua. É essa maquiagem que usamos sobre as coisas que tem que ser ditas que transforma as pessoas em perturbadas e mendicantes. Pra que ficar vivendo de ilusão? Encaremos a realidade e veremos que os sonhos são reais.
- uau, profundo! – ironizou a jurada do meio da mesa- Quer dizer então que o grande barato é deixar tudo concreto, é?! Se nem a natureza, que é nossa mãe, é concreta, seremos nós, rélos conteúdos moleculares desta existência, concretos? Se tudo fosse concreto, onde nasceriam as árvores?
- não estamos falando de ecologia, minha nobre colega naturalista. Estamos falando de fatos. – concluiu o da direita.
- não seja tão cético, meu caro – bravou o da esquerda – Todos nós somos feitos de possibilidades, de tentativas, de motivações. Se tu digeres bem as coisas cruas, nem todos tem estomago para tanto. A carga emocional que carregas não é a mesma carga emocional que outros carregam. Tens que aprender a viver num mundo onde as diferenças existem.
- ora, ora – recomeçou o da direita- temos aqui um belíssimo espécime de homem diferente. És igual a todos estes sonhadores que se escondem atrás de medos irreais para não conseguir o que tanto querem. Medos, estes, que nascem da certeza de saber que para se chegar lá, onde as conquistas estão, é preciso perder muitas outras coisas, tais como comodidade, segurança, certeza, porto seguro. Inventamos que é a falta de incentivo alheio que nos prende a ser o que somos. O que somos de verdade é o resultado de nossas escolhas. Livre arbítrio, já ouviu falar?
- opa! – levantou-se exaltada a jurada do meio – Só um minuto. Como assim? Você está se esquecendo de que somos também o que os outros pensam que somos. Nós somos o reflexo do meio externo onde vivemos. É o ciclo da natureza. O ciclo da vida. Nossa vida é parte da vida de todos aqueles que nos cercam. Eu dependo de tua troca de energias para manter as minhas energias equilibradas. Eu respondo ao seu mal-humor, a sua alegria assim como respondes também as minhas emoções e as minhas motivações...
- espera, aí – levantou-se o da esquerda – assim estás dizendo que somos um bando de Maria vai com as outras?
E ele ficou ali no meio, parado, vendo os jurados discutirem entre si, esquecendo que ele estava ali parado, aflito, afim de saber o resultado que mudará sua vida. Permaneceu por mais 20 minutos ali, estático, mudo, impressionado. Desistiu de esperar. Virou-se lentamente e saiu da sala. Foi direto para o hotel. Pegou sua mala, seu violão, a escova de dentes, o sabonete, o violão e voltou para casa.

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